domingo, 24 de agosto de 2014

É só um até logo - em memória à Lea Madureira Queiroga


Você provavelmente já viu várias postagens minhas no Facebook e no Instagram sobre a campanha do desafio do balde de gelo para arrecadação de fundos em busca da cura para a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Também já leu que minha vó enfrentou essa terrível doença. Mas o que não contei é o que senti, pensei e lembro sobre os 10 anos de privilégio que pude conviver com uma das pessoas mais incríveis, amorosas e gentis que conheci: Lea Madureira Queiroga. 

Associo a história da minha avó à da Cinderela. Os fatos principais são os mesmos. Quando vovó tinha apenas dois anos, sua mãe faleceu. Poucos anos depois, meu bisavô casou de novo. Vovó contou que cursou até a terceira série e que fazia os trabalhos domésticos em casa, lavando louça, limpando a casa, etc. A infância teve suas partes tristes, mas ainda assim ela me contava momentos divertidos e também de oração, como quando rezava escondida a "Ave Maria". Não me lembro direito o porquê de fazer escondido. 



 "Ainda que Cinderela e seu príncipe
tenham vivido felizes para sempre, 
o ponto, senhores, é que eles viveram!" 
- Para Sempre Cinderela

Meu avô, que na minha visão, é o príncipe da história, veio para o Brasil quando tinha 14 anos. Eu vi fotos dele antigas, e posso dizer: era bem forte e bonitão. Sempre achei seus olhos azuis lindos demais. Eles se conheceram, se apaixonaram, e vovô Zé então salvou a princesa. Vovó tinha 17 anos quando se casou. 
 
A vida era difícil, mas criaram seus três filhos com muito amor. Primeiro veio Zequinha, depois Luis, e por último, minha mãe, Lourdes. 

Infelizmente eu não sei muito bem como as vidas deles se desenrolaram nas décadas de 60 até 90. Lembro da história de que eles viajaram pra Portugal pra visitar a família de vovô, e que se arrumaram muito pra viagem de avião. Acho engraçado porque, hoje em dia, quando viajo, procuro a roupa mais confortável que existe, ainda mais para viagens longas. Mas entendo o pensamento deles ao quererem estar bem vestidos. Queria tê-los visto animados pra vigem!

Ah, é! Teve a situação em que vovó teve que operar a tireoide! Isso foi por volta nos anos 80. Minha existência está baseada nesse acontecimento. Não acredito que quase esqueci de contar isso!! 

Meu pai tinha se formado em Medicina fazia pouco tempo. Ele então ficou de cuidar de vovó no hospital. Não sei ao certo a função dele nessa situação, mas o importante é que, em um dia de visita no hospital, mamãe o conheceu. Vovó gostou dele logo de cara, e de alguma forma, ele ficou de ir à casa delas pra ver um jogo do Flamengo - mesmo papai sendo botafoguense.

Anos depois, eu nasci. :)

Assim, de 1991 até 2002, a minha vida ficou marcada pela convivência com vovó. Lembro de ela trazer mamadeira pra mim, de me dar chupetas, de me levar na escola, na fonoaudióloga e no ballet. Lembro do dia em que fui pra escola e assim que cheguei lá passei mal e ela me levou de volta pra casa e cuidou de mim. Lembro de quando estávamos andando na rua e vi um pipoqueiro no chão após um atropelamento. Tinha sangue e pipoca pra tudo que é lado. Lembro que fiquei muito triste e chorei. Lembro do dia que tio Zequinha ligou lá pra casa, disse que eu havia ganhado na loteria, e eu e vovó morremos de rir da brincadeira. 

Lembro de assistir a fita do filme "A Princesinha" várias e várias vezes. A história é muito bonita e gosto muito da parte na qual a personagem principal diz que todas nós somos princesas. Percebi então que eu já via vovó como uma princesa. E essa afirmação tornou-se ainda mais verdadeira. 


"Eu sou uma princesa. Todas as meninas são. 
Mesmo que elas vivam em sótãos velhos. 
Mesmo que se vistam em trapos, mesmo que não sejam bonitas, 
inteligentes, ou jovens. Elas ainda são princesas"
- A Princesinha

Vovó sempre assistia comigo e nunca reclamava de ver o mesmo filme. Lembro também de assistirmos "A Bela e a Fera", "A Pequena Sereia", e um programa na TV de um cientista engraçado, dentre um monte de outros filmes. Lembro de andarmos de barca e passearmos no centro do Rio. Lembro das vezes que ela comprou brinquedos pra mim, tipo o urso a quem dei o nome de José, e lembro que ela me disse que os brinquedos realmente ganhavam vida quando nos afastávamos. Eu acreditei por um tempo! :P

 Até que chegou a doença. E muita coisa mudou. Vovó, com mais ou menos 57 anos, foi diagnosticada com ELA. No início, eu com 5, não sabia nada sobre isso. Ela ainda me levava para a escola, mas tinha uma mão que não era muito boa. Eu dizia que não queria segurar a "mão ruim", e só segurava a "mão boa" dela. Lembro do dia quando ela subiu na escada pra pegar algo na prateleira e caiu.

Um dia, na volta da escola, fomos para a casa dela e de vovô. Tinha piscina no terraço e eu estava animada. Mas, enquanto estávamos lá, ela não se sentiu bem. Então, saímos e fomos pra dentro. Levei vovó até a cama dela e lá ficou deitada até mamãe chegar. Eu lembro de ter ficado preocupada. 

Chegou a hora de usar bengala. Mamãe e vovô resolveram que era hora de fazer uma mudança. Meus avós vieram, assim, morar perto da gente. A poucas quadras daqui de casa, era o novo apartamento deles. Adeus para a casa do Barreto com piscina, adeus crianças com quem brincava, adeus homem que vendia cuscuz na rua. Foi necessário. Um tempo depois, chegou a hora do andador.

Como vovó sempre gostou de desenhar, foi muito triste ver seus braços perderem o movimento. Ela pintava paisagens e eu admirava seu talento. Gostava das árvores, rios e montanhas que ela fazia. Gostava das toalhas que ela pintava pra mim. Levava pra escola e dizia: "minha vó que fez". Embora com o tempo ela não dominasse com precisão suas mãos, pintava sabonetes, pratos, pedras, e a arte continuava presente. Lembro da vez que ela pintou tantos sabonetes que a mesa de jantar ficou sem espaço livre. Estava coberta por eles. Um mais bonito que o outro. 


Stephen Hawking
O problema é que a doença não parava de avançar. Mais grandinha, eu sabia que se tratava da esclerose lateral amiotrófica, e já conhecia o cientista Stephen Hawking. Já que ele ficou tanto tempo com a doença (e ainda está), imaginava que vovó também pudesse aguentar e ir levando. Mamãe me contou que não havia cura e que os médicos diziam que o tempo médio de vida com a doença era de dois anos, mas isso não me impediu de rezar todas as noites para Deus fazê-la melhorar.

Vovó precisou andar de cadeira de rodas. As coisas ficaram ainda mais difíceis. Eu e mamãe passamos a dormir todos os sábados na casa deles, para ajudar vovô Zé. Eu na verdade me divertia. Adorava passar tempo com vovó. Ela era muito alegre, divertida, e gostávamos de assistir "Zorra Total" no sábado. Tínhamos em comum amar ver filmes. Ela tinha várias fitas, mas costumávamos também assistir filmes alugados. Lembro quando ela me deu de aniversário um filme dos "101 dálmatas". Era tipo uma continuação. Gostei bastante! Víamos também "Mudança de hábito" e ríamos demais!! 

Mudança de Hábito
Um laço muito importante que unia a gente era o amor pelo Natal, nossa época do ano favorita. Lembro dos anjinhos que ela fazia de enfeite, enquanto a arrumação do presépio ficava sob a responsabilidade de vovô. Sempre que chega o final do ano, sinto uma enorme alegria, o espírito de Natal, que ela também sentia. 

No domingo, na hora de me despedir de vovó, encontrava cinco reais entre sua mão direita e a almofada que segurava seu braço, ela já sentada no quarto da TV, onde eu e mamãe dormíamos. Eu ficava feliz porque tinha um dinheiro a mais pra comprar lanches e doces na escola durante a semana. 

Um desses sábados, foi dia de festa junina no Santuário das Almas, uma igreja na mesma rua do prédio deles. Depois da festa, fomos pra lá. Estava toda boba com os brindes que ganhei. Vovó ficou rindo ao me ver brincar. 

Na semana seguinte, cheguei a pensar em ir à casa dela, mas fiquei com preguiça. Pensei que logo a veria no sábado. A semana passa rápido mesmo. 

Só que na sexta-feira vovó ficou nervosa demais por não conseguir falar e sofreu um infarto. Foi levada pro hospital. No domingo à noite, depois da missa, mamãe recebeu a notícia e me contou que ela havia falecido. Eu nunca senti uma dor tão grande na minha vida. Não me despedi direito dela. Apenas dei um até logo, imaginando que a veria novamente na próxima semana. 

Tenho lindas lembranças dela. Em todas ela sorria. 

  
"Eu acredito que você seja,
e sempre será, minha princesinha"
- A Princesinha

Recentemente, a doença ficou famosa como jamais imaginei. Nunca vi tanta repercussão sobre a ELA. O impacto que isso teve sobre mim foi muito forte. Eu espero muito que as pesquisas avancem e que uma cura seja encontrada. Não quero mais que ninguém sofra por causa dessa doença. Na verdade, não quero que ninguém sofra por coisa alguma. Assim, é importante estar em constante oração, porque, mesmo que nossa vida esteja indo bem em um dado momento, a vida de outra pessoa pode estar passando por uma tempestade.

A saudade é permanente, mas ao mesmo tempo, fico aliviada por ela não estar mais sentindo dor ou sofrendo. Vovó e vovô tiveram partes da vida muito tristes, mas o amor que sentiam um pelo outro foi o mais puro que já vi. Creio na vida eterna. Agora eles estão descansando, e nós que ficamos, ao menos tenhamos esperança, e saibamos viver com sabedoria em cada momento da vida. No final das contas, é só um até logo.