segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O som do silêncio


José Queiroga enfrentou seu último suspiro com uma espera angustiante. Havia enfrentado um acidente vascular cerebral com seus 70 anos e, na manhã do dia 06 de outubro de 2012, passou muito mal. Lourdes, sua filha caçula, com a qual morava, pediu uma ambulância do plano de saúde.

Z
é acreditava que uma vida sofrida o levaria aos céus após a morte. Com 77 anos, ele não sofreu apenas esperando a ambulância do plano de saúde. Zé sofreu quando saiu de Portugal, com apenas 14 anos,e veio buscar oportunidades no Brasil. Sofreu quando teve seus pés queimados num acidente do serviço. Sofreu quando sua esposa Lea adoeceu e, cinco anos depois, partiu deste mundo. O acidente vascular cerebral o deixou sem poder falar, mas as pessoas próximas a Zé já não costumavam ouvir o som da sua voz. Ele não era um homem de muitas palavras.

Sobre sua infância, ele dizia que ajudava na Igreja, mas volta e meia aprontava com os outros meninos e recebia sermão do padre.  Mesmo sendo idoso, Zé era um homem boa-pinta. Seus olhos azuis chamavam atenção e seus traços firmes caracterizavam a austeridade de seu caráter. Pai de três filhos e avô de três netos, seu pedido era uma ordem e sua presença exigia respeito. A família se reunia diante da televisão para assistir ao telejornal, que, era obviamente, escolha do chefe da casa. No entanto, essas barreiras invisíveis eram quebradas quando lhe serviam uma taça de vinho ou até mesmo um pedaço de chocolate.O rosto de Zé era preenchido por um sorriso, como raios de sol invadindo um quarto escuro. O pai durão sempre gostou de umas cervejinhas,de um vinhozinho e de todas as comidinhas que fazem um mal danado para a saúde. Seu filho Zequinha, parecido com ele nesse sentido, alegrava o pai com petiscos e uma garrafa de vinho em suas visitas nos fins de semana. Os dois passavam a manhã de sábado assistindo a TV e fazendo companhia um ao outro. Não havia muito a ser dito, mas o fato de estarem juntos era o bastante para confortá-los.


Lourdes, a mais nova, sofreu junto com o pai nos últimos meses, pois em janeiro, ele havia piorado e passou a não conseguir mais andar até o banheiro como antes fazia.Mas ela garantiu que Zé recebesse todo o cuidado possível. Dia após dia, a rotina em cuidar do pai idoso não era nada fácil. Como uma máquina, o piloto-automático agiu como uma força para tirar o pai da depressão e fez com que ela construísse uma armadura que protegesse os dois. O cotidiano funcionava como um mar revolto e a depressão do pai como as tempestades num oceano. Era preciso domar as ondas, voltar com a calmaria e continuar seguindo a viagem. Apesar no temperamento difícildo pai, a filha seguia em frente, sempre chamando Zé para a vida.

Uma coisa que caracteriza a personalidade de José Queiroga é, sem dúvida, o típico cochilo depois do almoço. Desde que seus filhos eram crianças, ele gostava e dormir e sua esposa tinha que mandar as crianças fazerem silêncio para que não o acordassem. Embora passasse as tardes dormindo, de noite não tinha dificuldade alguma para pegar no sono. Quando sua esposa adquiriu a doença esclerose lateral amiotrófica – a mesma de Stephen Hawking –, ele precisava das tardes livres para descansar. Até porque, conforme Lea perdia os movimentos, ela ficava cada vez mais dependente dos seus cuidados. Foram cinco anos cuidando da esposa mais três anos de luto e, então, Zé sofreu o AVC, que o deixou sem movimentos do lado direito e sem o poder da escrita, da leitura e da fala.



José Queiroga enfrentou seu último suspiro com uma espera angustiante. Havia enfrentado um acidente vascular cerebral com seus 70 anos e, na manhã do dia 06 de outubro de 2012, passou muito mal. Lourdes, sua filha caçula, com a qual morava, pediu uma ambulância do plano de saúde. E nada. A demora fez com que ela chamasse o serviço público de saúde para atendê-lo. Apesar de terem chegado primeiro, foi tarde demais. O homem de poucas palavras havia partido. No momento em que os enfermeiros do 192 estavam saindo, os do plano de saúde chegaram. Ainda que eles tivessem chegado a tempo e o resultado fosse o mesmo, pagar por um serviço de saúde e não receber o que foi garantido é não só aflitivo como torturante.

A presença de Zé era como o som do silêncio, e embora a casa esteja agora mais quieta do que nunca, a saudade deixada por ele parece ecoar pelos cômodos e corredores. A impressão que fica é que ele está dormindo. Sua partida é apenas um dos seus cochilos após o almoço. É a calmaria após a tempestade, é a paz após a guerra.